Parece evidente, com base no princípio da motivação dos atos administrativos (Capítulo I), que a autoridade de trânsito, membros da JARI e conselheiros do CETRAN devem fundamentar suas decisões, não podendo se eximirem de julgar os temas apresentados pelo condutor.
Pois bem.
A questão que lanço é, se a JARI, mesmo estando em posse de documentos que comprovam a inocência do condutor e o não cometimento da infração, deixa de julgar e determina a continuidade do processo administrativo punitivo, nesses casos os seus membros (especialmente o relator) podem ser incursos na Lei de Abuso de Autoridade?
Na minha opinião, sim.
A Lei 13.869, mais conhecida como Lei de Abuso de Autoridade, foi incorporada ao nosso ordenamento jurídico sob o fundamento de ser uma ferramenta para destinada a resguardar direitos e garantias fundamentais de ordem constitucional ou infraconstitucional do cidadão, limitando os atos praticados pelos agentes públicos, evitando a pratica de condutas abusivas, fora de suas prerrogativas e que prejudiquem o administrado por mero capricho ou satisfação pessoal ou para benefício próprio ou de terceiros.
Isso é o que consta no artigo 1º da citada Lei:
Art. 1º Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.
1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
A primeira regra a ser observada é que a Lei de Abuso de Autoridade somente se aplica a agentes públicos, servidores ou não.
Portanto, para ser aplicável aos membros da JARI, temos que saber a natureza jurídica dos componentes dessa junta administrativa.
Segundo o Código de Trânsito Brasileiro, em seu artigo 1º, o trânsito em condições seguras é um direito de todos e um dever de todos os órgãos e componentes do Sistema Nacional de Trânsito:
Art. 1º, § 2º O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito.
E os órgãos e entidades que compõem o SNT, respondem objetivamente por danos causados aos cidadãos, sempre que houver ação, omissão ou erro na execução de programas, projetos e serviços, de acordo com o mesmo artigo 1º, em seu parágrafo 3º:
3º Os órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito respondem, no âmbito das respectivas competências, objetivamente, por danos causados aos cidadãos em virtude de ação, omissão ou erro na execução e manutenção de programas, projetos e serviços que garantam o exercício do direito do trânsito seguro.
E uma das finalidades dos órgãos e entidades que compõem o SNT é justamente o exercício da fiscalização e julgamento das infrações e recursos de multa, de acordo com o artigo 5º, do Código de Trânsito Brasileiro:
Art. 5º O Sistema Nacional de Trânsito é o conjunto de órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que tem por finalidade o exercício das atividades de planejamento, administração, normatização, pesquisa, registro e licenciamento de veículos, formação, habilitação e reciclagem de condutores, educação, engenharia, operação do sistema viário, policiamento, fiscalização, julgamento de infrações e de recursos e aplicação de penalidades.
Portanto, já é possível entender que as JARIs exercem atividade estatal e são relacionadas como componentes do Sistema Nacional de Trânsito, ao lado do CONTRAN, CETRAN, CONTRANDIFE, DNIT, ANTT, DETRAN, SECRETARIAS DE TRÂNSITO e POLICIAS MILITARES e RODOVIÁRIAS:
Art. 7º Compõem o Sistema Nacional de Trânsito os seguintes órgãos e entidades:
VII – as Juntas Administrativas de Recursos de Infrações – JARI.
Assim, os membros dessas Juntas Administrativas, apesar de não serem servidores públicos, exercem função pública, podendo sim responder pelos seus atos, inclusive pelos crimes previstos na Lei de Abuso de Autoridade, ainda mais pelo fato de que o próprio Código de Trânsito Brasileiro já traz a previsão de que os componentes do SNT respondem objetivamente pelos danos causados aos cidadãos.
De outro lado, somente o fato de poder responder por crimes com base na Lei 13.869 não é o suficiente, pois existem outros requisitos que devem ser observados para imputar as condutas previstas a esses agentes públicos.
A segunda questão a ser analisada, portanto, é que para ser considerado como CRIME, a conduta praticada deve ser DOLOSA, ou seja, o agente deve ter a intensão de prejudicar o cidadão, para obter benefício em causa própria ou para terceiros ou ainda praticar a conduta por mero capricho ou satisfação pessoal, conforme parágrafo único do artigo 1º, da Lei de Abuso de Autoridade:
Art. 1º Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.
1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
Constituem, portanto, elementos subjetivos dos crimes previstos na Lei e devem serem analisados separadamente.
Causa Própria ou de Terceiro
Em causa própria, é conduta impossível de ser praticada pelos membros da JARI, já que em suas decisões não há qualquer possibilidade de obtenção de vantagens indevidas, ficando o prejuízo apenas com o condutor considerado como infrator, portanto, não há como configurar o dolo em relação a esse elemento subjetivo.
Em benefício de terceiros, é conduta que pode ser caracterizada quando o indeferimento do recurso administrativo tem como escopo garantir a arrecadação dos valores das multas pelo órgão executivo de trânsito, quer seja na esfera estadual quanto municipal.
A título de exemplo, um aparelho metrológico não metrológico, instalado de forma irregular ou sem seguir os critérios técnicos estabelecidos em resolução do CONTRAN ou em portarias do INMETRO e que sabidamente está sendo utilizado para constatar infrações de trânsito, mas cujos recursos administrativos não estão sendo deferidos, sob pena de ocasionarem o cancelamento de todas as autuações lavradas com base nesse aparelho. Nesse caso, o indeferimento dos recursos pelos membros da JARI tem a finalidade de garantir a arrecadação e a manutenção do uso desse aparelho, ainda que de forma irregular, podendo ser interpretado como um Abuso de Autoridade, em benefício de um terceiro, que no caso seria a administração pública.
Mero Capricho ou Satisfação Pessoal
O terceiro elemento subjetivo dos crimes de abuso de autoridade é quando praticadas por “mero capricho”, que apesar de ser uma conduta genérica, pode ser sintetizada da seguinte forma, partindo do conceito contido no dicionário Aurélio:
Significado de Mero
Adjetivo;
Sem mistura nem alteração; puro, genuíno. De teor comum, simples; Desprovido de complexidade; Banal. De natureza inopinada; Imprevisto, extraordinário.
Etimologia (origem da palavra mero). De origem questionável.
Significado de Capricho
Substantivo masculino;
Vontade súbita que aparece sem razão alguma; Birra, teimosia. Obstinação injustificada em alguma coisa; Capricheira. Alteração repentina de comportamento; Inconstância. Aplicação na realização de alguma coisa; Esmero. Mudança sem razão aparente; Irregularidade, variabilidade.
Etimologia (origem da palavra capricho). Do italiano capriccio.
Assim, o mero capricho pode ser entendimento objetivamente como “A simples vontade ou obstinação de alguém em fazer alguma coisa de forma injustificada, por simples teimosia”.
Analisados os requisitos separadamente, podemos admitir que, sempre que os membros da JARI, ignorando os elementos contidos no processo administrativo, indeferem o pedido de cancelamento, de forma volitiva, fundamentando sua decisão apenas com base no princípio da fé-pública, argumentando que a palavra do agente goza de veracidade e legitimidade, parece evidente que existe uma “má vontade”, uma “teimosia” injustificada em manter a penalidade, prejudicando o condutor e beneficiando o órgão público, o que caracteriza o abuso de autoridade por essas pessoas, que compõem a Junta Administrativa.
Mas, se esse for o caso, em qual crime incorreriam?
A Lei 13.869 traz uma série de tipificações criminais que podem ser aplicadas ao caso em apreço, começando pelo artigo 7º:
Art. 7º As responsabilidades civil e administrativa são independentes da criminal, não se podendo mais questionar sobre a existência ou a autoria do fato quando essas questões tenham sido decididas no juízo criminal.
O artigo deixa claro que, sendo condenado, o abuso de autoridade restará evidente, o que dará ensejo à busca pela indenização pelo dano moral decorrente do abuso.
Não se trata, portanto, de mero dissabor.
Se um crime foi cometido contra a pessoa, esta tem o direito de ser indenizada.
Já no artigo 27, temos as situações que remetem ao processo administrativo punitivo:
Art. 27. Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. Não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada.
Aqui, vou fazer um adendo: O crime previsto no artigo 27 é um delito de natureza própria, só pode ser imputado a quem tem atribuição de requisitar ou instaurar procedimento administrativo.
E “quem” requisita a instauração do processo administrativo contra o condutor é o agente fiscalizador que constata a “suposta” infração, através da lavratura do auto de infração, portanto, ele (agente de trânsito) também pode responder pelo abuso de autoridade.
E “quem” instaura o processo administrativo é a autoridade de trânsito, através da analise do auto de infração e aplicação da penalidade, prevista no artigo 281:
Art. 281. A autoridade de trânsito, na esfera da competência estabelecida neste Código e dentro de sua circunscrição, julgará a consistência do auto de infração e aplicará a penalidade cabível.
Nesses termos, parece evidente que a Autoridade de Trânsito também pode responder pelo crime de abuso de autoridade, mas essas duas figuras não serão objeto de estudo nesse livro, já que preferi resumir a análise apenas aos membros da JARI, por ocasião do princípio da fundamentação e motivação do ato administrativo.
Passemos, portanto, ao objeto específico, que é o julgamento do recurso e indeferimento do pedido de cancelamento pela JARI.
Se de um lado, requisitar a instauração (agente de trânsito) ou instaurar (autoridade de trânsito) processo administrativo desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de infração administrativa é um crime, da mesma forma dar continuidade ao processo promovendo a persecução administrativa punitiva também é crime previsto na Lei 13.869:
Art. 30. Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
A palavra “proceder” é sinônimo de “dar seguimento”, “dar resultado”, “continuar” a persecução administrativa, sem justa causa ou contra quem se sabe inocente.
Nesse passo, o recurso em 1ª instância, direcionado à JARI, tem como objeto a decisão da autoridade de trânsito em instaurar o processo administrativo, ou seja, cabe à JARI analisar o auto de infração, as alegações de mérito, os fundamentos jurídicos e as provas apresentadas no processo, para decidir “quem” tem razão, deferindo o pedido e declarando a inocência ou a justa causa no cancelamento da penalidade ou indeferindo o pedido e declarando a falta da justa causa ao pedido de cancelamento.
Portanto, na medida em que deixa de analisar as razões de mérito alegadas pelo condutor, procedendo a persecução da penalidade administrativa, sem fundamentar a decisão ou sendo apresentadas provas da inocência do condutor, demonstrando que não foi ele “quem” cometeu a infração, sendo indeferido o pedido pela JARI, caracterizado estará o crime previsto no artigo 30.
Mas porque o crime previsto no artigo 27, que pode ser direcionado para o agente de trânsito e para a autoridade de trânsito, possui uma pena menor do que essa, prevista no artigo 30, que pode ser atribuído aos membros da JARI?
Simples.
A primeira fase do processo administrativo punitivo, que é a autuação e instauração do processo, não existe prejuízo ao condutor, que somente terá seu direito abalado com a manutenção da penalidade pela JARI.
Vale dizer, a omissão praticada pelos membros da JARI, que ignoraram as provas apresentadas, é mais prejudicial do que a ação praticada pelo agente que lavrou o auto de infração e pela autoridade de trânsito que instaurou o processo administrativo.
E quais seriam os efeitos de uma eventual condenação?
Essa questão também foi prevista pela Lei 13.869:
Art. 4º São efeitos da condenação:
I – tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, devendo o juiz, a requerimento do ofendido, fixar na sentença o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos por ele sofridos;
II – a inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública, pelo período de 1 (um) a 5 (cinco) anos;
III – a perda do cargo, do mandato ou da função pública.
Então, no mínimo, ainda que o membro da JARI não perca seu cargo ou mandato, a condenação em indenização por danos morais já seria devida no caso de uma condenação.
Por isso, esse artigo deve servir para reflexão, tanto daqueles que recorreram contra as penalidades de trânsito demonstrando sua inocência, quanto dos membros das JARIs que julgarão esses processos.
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