Estamos vivendo uma situação atípica, uma pandemia causada por um vírus que simplesmente paralisou todos os países do mundo.
Quarentena, toque de recolher, fechamento do comércio, proibição de aglomeramentos, escolas sem aulas, empresas sem funcionários, filas para entrar em supermercados, ônibus que não podem circular, aviões que não decolam, navios que não atracam e muito, muito álcool em gel nas mãos.
E se for espirrar ou tossir, cubra a boca e o nariz, sob pena de linchamento.
Nesse cenário Hollywoodiano da vida real, o coronavirus tem sido o responsável por inúmeras Medidas Provisórias alterando a Lei provisoriamente na intensão de minimizar as consequências sociais advindas da paralisação, destinar verbas para a saúde, resguardar nosso sistema financeiro e evitar uma futura crise econômica, que muito provavelmente se abaterá sobre o país.
O CONTRAN, na esteira da paralisação nacional, editou as Deliberações 185 e 186, que amplia o prazo para a conclusão do processo de habilitação, interrompe os prazos para apresentação de condutor e defesa previa, interposição de recursos contra penalidades de multa e suspensão do direito de dirigir e cassação de habilitação, além de interromper o prazo previsto para notificação do cometimento da infração.
A questão, entretanto, para o Direito de Trânsito, é saber se essa situação atípica justifica atos administrativos que se sobreponham à Lei, estendendo ou eliminando prazos, alterando condutas tipificadas como infração de trânsito ou mesmo anulando determinados procedimentos previstos para o processo administrativo punitivo?
Se a respostar for sim, devemos parabenizar o CONTRAN, pois certamente essas deliberações trarão benefícios para evitar a propagação do vírus, já que protocolar recursos nos DETRANS é uma tarefa árdua, demorada, cansativa e num ambiente em que a aglomeração de pessoas é inevitavelmente a regra.
Agora, se a resposta for não, estamos diante de milhares de processos administrativos que deverão ser anulados judicialmente diante da afronta ao princípio da legalidade, posto que deliberações, ainda que exaradas pela autoridade de trânsito, somente tem validade quando normatizam procedimentos sem, contudo, alterar a Lei.
MAS AFINAL DE CONTAS, PRA QUE SERVE UMA DELIBERAÇÃO?
Deliberações são atos administrativos normativos ou decisórios emanados de órgãos colegiados, visando esclarecer ou coordenar a correta aplicação da Lei, sendo posteriormente expressa através de uma Resolução.
A competência desse ato administrativo é do Contran, através de seu presidente, conforme dispõe o artigo 12, inciso I, do Código de Trânsito Brasileiro e Artigo 6º, da Resolução 776, do CONTRAN:
CTB
Art. 12. Compete ao CONTRAN:
I – estabelecer as normas regulamentares referidas neste Código e as diretrizes da Política Nacional de Trânsito;
Resolução 776
Art. 6º Ao Presidente do CONTRAN incumbe:
IX – emitir atos administrativos de caráter normativo, na forma deste regimento;
XII – emitir Deliberações, ad referendum do CONTRAN, nos casos de urgência e de relevante interesse público;
Logo, sempre que a Lei de trânsito estabelecer uma norma genérica, cabe ao CONTRAN especificar como será a sua aplicação, fornecendo orientações sobre procedimentos obrigatórios relacionados ao processo administrativo para aplicação das penalidades de multa, suspensão e cassação da CNH, entre outros temas.
Uma Deliberação não pode e não deve promover alterações no texto legal, situação possível somente através de Medida Provisória ou Lei complementar.
Contudo, ainda que adentre à competência legislativa, vincula os órgãos executivos de transito às suas decisões.
Nesse sentido, o CONTRAN, no intuito de prorrogar os prazos estipulados no Código de Trânsito Brasileiro, para conclusão da CNH, apresentação de Defesa Previa e Recursos, editou a Deliberação 185:
Art. 2º O prazo para que o processo de habilitação do candidato permaneça ativo no órgão ou entidade executivo de trânsito dos Estados e do Distrito Federal, previsto no art. 2º, § 3º, da Resolução CONTRAN nº 168, de 14 de dezembro de 2004, fica ampliado para 18 (dezoito) meses, inclusive para os processos administrativos em trâmite.
Art. 3º Ficam interrompidos, por tempo indeterminado, os prazos para apresentação de:
I – defesa da autuação, previsto no art. 4º, § 4º, da Resolução CONTRAN nº 619, de 06 de setembro de 2016;
II – recursos de multa, previstos nos arts. 11, inciso IV, e 15, da Resolução CONTRAN nº 619, de 2016;
III – defesa processual, previsto no art. 10, § 5º, da Resolução CONTRAN nº 723, de 06 de fevereiro de 2018; e
IV – recursos de suspensão do direito de dirigir e de cassação do documento de habilitação, previstos nos arts. 15, § 1º, e 16, § 1º, da Resolução CONTRAN nº 723, de 2018.
Art. 4º Fica interrompido, por tempo indeterminado, o prazo para identificação do condutor infrator, previsto no art. 257, § 7º, do CTB, inclusive nos processos administrativos em trâmite.
Já sobre a expedição da notificação de autuação, editou a Deliberação 186, que diz:
Art. 2º Enquanto perdurar a interrupção dos prazos processuais mencionados na Deliberação CONTRAN nº 185, de 2020, a expedição das notificações de autuação deverá seguir os seguintes critérios:
I – para cumprimento do prazo máximo de trinta dias, determinado no art. 281, parágrafo único, inciso II, do CTB, e no art. 4º da Resolução CONTRAN nº 619, de 06 de setembro de 2016, a expedição da notificação da autuação deve ocorrer apenas com sua inclusão em sistema informatizado do órgão autuador, sem remessa ao proprietário do veículo;
II – tão logo seja revogada a Deliberação CONTRAN nº 185, de 2020, a autoridade de trânsito deverá providenciar o envio das notificações de autuação, decorrentes de infrações praticadas a partir de 20 de março de 2020, contendo a data de término da apresentação de defesa da autuação e de indicação do condutor infrator, nos termos da Resolução CONTRAN nº 619, de 2016.
Parágrafo único. As notificações de autuação, decorrentes de infrações praticadas entre 26 de fevereiro de 2020 e 19 de março de 2020, e que ainda não foram expedidas, deverão obedecer os critérios estabelecidos nos incisos I e II.
Primeiramente, cabe observar que a Deliberação 185 trata da INTERRUPÇÃO dos prazos no processo administrativo, isto é, superada a causa interruptiva, o prazo será contado novamente do seu início.
Não há, nos artigos 2º e 3º, da Deliberação 185 qualquer irregularidade no ato administrativo proposto pelo CONTRAN.
O prazo para conclusão do processo de habilitação não encontra previsão legal no Código de Trânsito Brasileiro, tendo sido estabelecido através da Resolução 168, podendo ser alterado pela Deliberação.
Art. 2º, §3º O processo do candidato à habilitação ficará ativo no órgão ou entidade executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal, pelo prazo de 12 (doze) meses, contados da data do requerimento do candidato.
Já a apresentação de defesa prévia e recursos em 1ª instância possuem a previsão do prazo mínimo que deve ser observado pelos órgãos de trânsito, sendo omissas as normas em relação ao prazo máximo:
Resolução 619
Art. 4º, § 4º Da Notificação da Autuação constará a data do término do prazo para a apresentação da Defesa da Autuação pelo proprietário do veículo ou pelo condutor infrator devidamente identificado, que não será inferior a 15 (quinze) dias, contados da data da notificação da autuação ou publicação por edital, observado o disposto no art. 13 desta Resolução.
Resolução 723
Art. 10, § 5º Da notificação constará a data do término do prazo para a apresentação da defesa, que não será inferior a 15 (quinze) dias contados a partir da data da notificação da instauração do processo administrativo.
Art. 15, V – a data limite para entrega do documento de habilitação físico ou para interpor recurso à JARI;
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- 1º O prazo de que trata o inciso V não será inferior a 30 (trinta) dias.
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CTB
Art. 282, § 4º Da notificação deverá constar a data do término do prazo para apresentação de recurso pelo responsável pela infração, que não será inferior a trinta dias contados da data da notificação da penalidade.
Não encontra qualquer óbice legal, portanto, o aumento dos prazos propostos pela interrupção prevista na Deliberação 185, no que tange à conclusão do processo de habilitação, apresentação da defesa prévia ou recursos em 1ª instância nos processos para aplicação das penalidades de multa, suspensão do direito de dirigir e cassação de habilitação.
Já os prazos para expedição da notificação de autuação, identificação de condutor infrator e recursos contra as decisões da JARI, contam com um prazo limite, estipulado pelo Código de Trânsito Brasileiro:
Art. 257, § 7o Não sendo imediata a identificação do infrator, o principal condutor ou o proprietário do veículo terá quinze dias de prazo, após a notificação da autuação, para apresentá-lo, na forma em que dispuser o Conselho Nacional de Trânsito (Contran), ao fim do qual, não o fazendo, será considerado responsável pela infração o principal condutor ou, em sua ausência, o proprietário do veículo.
Art. 281, Parágrafo único. O auto de infração será arquivado e seu registro julgado insubsistente:
II – se, no prazo máximo de trinta dias, não for expedida a notificação da autuação.
Art. 288. Das decisões da JARI cabe recurso a ser interposto, na forma do artigo seguinte, no prazo de trinta dias contado da publicação ou da notificação da decisão.
Art. 290. Implicam encerramento da instância administrativa de julgamento de infrações e penalidades:
II – a não interposição do recurso no prazo legal; e
Parágrafo único. Esgotados os recursos, as penalidades aplicadas nos termos deste Código serão cadastradas no RENACH.
Tratam-se de “prazos próprios”, isto é, quando não observados geram a preclusão do direito de praticar o ato administrativo.
Assim, o proprietário que não apresentar condutor em 15 (quinze) dias, será considerado responsável pela infração.
A autoridade de trânsito que não expedir a notificação do cometimento da infração no prazo de 30 (trinta) dias, deverá arquivar o auto de infração.
O infrator que não apresentar recurso contra a decisão da JARI no prazo de 30 (trinta) dias, terá a penalidade aplicada no RENACH.
Não pode, portanto, uma Deliberação, alterar, readequar ou interpretar o texto legal que não dependa de normatização.
A VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE E DA PROPORCIONALIDADE DA PENALIDADE
Outro ponto que merece destaque é que a Deliberação 185 propôs a interrupção dos prazos de vencimento da CNH e PPD, para efeitos de fiscalização:
Art. 5º Para fins de fiscalização, ficam interrompidos, por tempo indeterminado, os prazos:
[…]
III – para que o condutor possa dirigir veículo com validade Carteira Nacional de Habilitação (CNH) vencida desde 19/02/2020, previsto no art. 162, inciso V, do CTB.
Parágrafo único. O prazo a que se refere o inciso III também aplica-se à Permissão para Dirigir (PPD).
Acontece que a infração ao artigo 162, V (carteira vencida), só ocorre quando o condutor DIRIGIR com validade da Carteira Nacional de Habilitação vencida há mais de trinta dias.
Nesse caso, os condutores que tiveram a validade da CNH vencida após o dia 19 de março foram beneficiados pela atipicidade da conduta, prevista pela Deliberação 185, enquanto os condutores que tiveram a validade da CNH vencida antes dessa data e que por algum motivo não estavam dirigindo e não conseguiram renovar a CNH a tempo, não obtiveram esse benefício.
Observe que, mesmo não tendo cometido a infração anteriormente, o condutor será penalizado se voltar a dirigir, enquanto os demais, que tiveram a CNH vencida após o dia 19, não podem ser autuados.
Isso viola o princípio da igualdade, já que o Código de Trânsito Brasileiro não diferencia a conduta infratora e não caberia ao CONTRAN fazer essa distinção, possibilitando o cometimento de infração para uns e penalizando a outros.
Logo, imaginando que a Deliberação tenha força de Lei, o mínimo que poderia estabelecer é que a fiscalização fosse suspensa para todos os condutores que estão com a CNH ou PPD vencidas, mesmo porque, a necessidade de dirigir um veículo automotor se tornou ainda maior, já que o transporte público está quase paralisado em todas as cidades do Brasil.
Outro detalhe é que a Deliberação 185 foi omissa em relação aos processos de suspensão do direito de dirigir, cuja penalidade esgota no período de interrupção dos prazos.
Isso faz com que, mesmo tendo cumprido a penalidade, o condutor não terá condições de dirigir o veículo automotor, já que não tem como realizar as provas teóricas para a devolução do documento, sofrendo um aumento do prazo em que deve permanecer sem dirigir, tornando desproporcional a penalidade aplicada.
Apesar do Código de Trânsito Brasileiro não trazer a previsão de que o Direito de Dirigir continua suspenso quando pendente apenas o curso de reciclagem, que é a penalidade acessória, na prática os DETRANS somente retiram a restrição após a realização do curso e aprovação na prova teórica, podendo inclusive o condutor ser penalizado com a cassação da CNH caso seja flagrado conduzindo o veículo automotor nessas condições.
PRAZO PARA TRANSFERIR VEÍCULO AUTOMOTOR X PRAZO PARA COMUNICAR A VENDA
A Deliberação 185 também interrompeu o prazo para a transferência de propriedade dos veículos automotores, que é de 30 (trinta) dias:
Art. 5º Para fins de fiscalização, ficam interrompidos, por tempo indeterminado, os prazos:
I – para o proprietário adotar as providências necessárias à efetivação da expedição de Certificado de Registro de Veículo (CRV) em caso de transferência de propriedade de veículo adquirido desde 19/02/2020, previsto no art. 123, § 1º, do CTB;
A compra e venda de veículo atrai duas regras de responsabilidades previstas nos artigos 123 e 134, do Código de Trânsito Brasileiro, quais sejam as obrigações de transferir o veículo dentro do prazo de 30 (trinta) dias e comunicar a venda do veículo no mesmo prazo.
Entretanto, a Deliberação do CONTRAN tratou de apenas uma obrigação, deixando indeterminando o prazo para a transferência do veículo.
Primeiramente, a norma prevista para a transferência de propriedade é de prazo próprio, assim como a regra para apresentação de condutor ou recurso em segunda instância, sendo considerada uma infração de trânsito (Art. 233) a transferência fora do prazo.
Portanto, a Deliberação 185 não poderia suspender o prazo previsto no texto legal.
E de outro lado, ao se omitir em relação ao prazo para comunicar a venda, a Deliberação deixou o vendedor do veículo com a responsabilidade pelas infrações cometidas pelo comprador após o dia 19 de março, ainda mais se decorrerem de equipamentos obrigatórios do veículo, que não permite a identificação de condutor.
Ou seja, a Deliberação desonerou o comprador da obrigação de transferir seu veículo, mas onerou o vendedor com a responsabilidade pelas infrações cometidas, já que não tem como comunicar a venda nesse período em que os DETRANS permanecem fechados ao público.
A NOTIFICAÇÃO DE AUTUAÇÃO
Por fim, a Deliberação 186 não trouxe a previsão de reenvio de notificações ocorridas até 19 de março.
Isso implica em transferir o ônus da ciência dos prazos interrompidos aos usuários do sistema nacional de trânsito.
Entretanto, a dupla notificação estabelecida nos artigos 280, 281 e 282 também possui dupla função: 1. Possibilitar ao proprietário a ciência de que foi lavrada a autuação; 2. Possibilitar ao proprietário a ciência do prazo limite que dispõe para apresentar o condutor infrator ou apresentar defesa contra a autuação.
Assim, em que pese a notificação ter sido enviada antes da interrupção do prazo, dando ciência da autuação, a interrupção do prazo impõe nova notificação assim que revogada a Deliberação 185, informando sobre os novos prazos administrativos.
CONCLUSÃO
A Deliberação 185 e 186, no que tangem ao prolongamento dos prazos de notificação da autuação e apresentação de condutor infrator se demonstram ilegais.
Entretanto, por se tratar de um ato administrativo praticado pelo presidente do CONTRAN, há que se presumir o cumprimento da norma pelos órgãos de trânsito, vez que são órgãos executivos e não normativos.
Entretanto, as notificações de autuação realizadas fora do prazo de 30 (trinta) dias, previsto pelo artigo 281, traz evidentes danos para o proprietário do veículo, devido ao lapso temporal, uma vez que, passados 40, 50, 60 dias, a possibilidade de gerenciar as provas do não cometimento da infração ou a lembrança de quem conduzia o veículo, ficariam evidentemente prejudicados.
Já a apresentação de condutor realizada fora do prazo e o recurso contra as decisões da JARI, podem ser recusadas pelos órgãos de trânsito, vez que havendo a previsão legal, não há qualquer liberdade aos atos administrativos.
Logo, por precaução, os profissionais que atuam com a defesa de condutores devem enviar essas peças dentro do prazo estabelecido, por precaução.
De outro lado, tornar a conduta de dirigir com a CNH ou PPD vencidas há mais de 30 (trinta) dias como sendo atípica para alguns condutores e típica para outros, fere o princípio da igualdade, sendo essa a tese de defesa que deve ser desenvolvida na defesa dos eventuais infratores.
Evidentemente que, diante da crise na qual nos encontramos, medidas de urgência devem ser adotadas, entretanto, nada justifica atos atropelados emanados por autoridade de trânsito que não tem competência para legislar, alterando, criando ou interpretando a Lei a seu critério.
Portanto, a Deliberação 185 e 186 devem ser observadas naquilo que beneficie os condutores e rechaçada naquilo que lhes traga prejuízos.
ELABORADO POR:
VAGNER OLIVEIRA
Professor de Direito de Trânsito e Advogado de Trânsito na cidade de Maringá/PR.
Perfeitas suas observações.
Meus parabéns.
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