Resolução não cria (mais) infração de trânsito!

Parece bastante evidente que as alterações que a Lei 14.071 trará ao Código de Trânsito Brasileiro vai lançar o processo administrativo de trânsito a um novo patamar, mais célere e mais eficiente.

Algumas dessas alterações já eram esperadas, já que as jurisprudências de nossos tribunais trataram de consolidar entendimentos de aplicação da norma como uma forma de adequar o CTB à realidade social, a exemplo das infrações administrativas, que não podem computar pontos no prontuário do condutor a fim de causar obstáculos ao direito de dirigir. 

Outras, surgiram como uma novidade que, apesar de necessárias, não eram vislumbradas nem pelo mais otimista advogado de trânsito, como por exemplo a preclusão do processo administrativo de trânsito no prazo de 180 dias.

A mudança mais significativa, no entanto, no que diz respeito às multas de trânsito, foi justamente na forma de tipificar a infração de trânsito, já que o texto do artigo 161 foi alterado, eliminando a regra que possibilitava ao CONTRAN criar novos tipos de infração de trânsito.

Aliás, essa condição de ilegalidade já havia sido definida pelo Supremo Tribunal Federal:

O Tribunal, por maioria, julgou prejudicada a ação quanto ao art. 288, § 2º, do Código de Trânsito Brasileiro – CTB, vencido o Ministro Marco Aurélio (Relator), que o declarava inconstitucional. Por maioria, julgou improcedente a ação, declarando-se a constitucionalidade dos arts. 124, VIII, 128, e 131, § 2º, do CTB, vencido o Ministro Celso de Mello. Por unanimidade, deu interpretação conforme a Constituição ao art. 161, parágrafo único, do CTB, para afastar a possibilidade de estabelecimento de sanção por parte do Conselho Nacional de Trânsito. Por maioria, declarou a nulidade da expressão “ou das resoluções do CONTRAN” constante do art. 161, caput, do Código de Trânsito Brasileiro, vencidos os Ministros Marco Aurélio, Edson Fachin, Roberto Barroso e Rosa Weber. Redigirá o acórdão o Ministro Ricardo Lewandowski. Ausente, justificadamente, o Ministro Luiz Fux. Presidência do Ministro Dias Toffoli. Plenário, 10.04.2019.(ADI2998)

A alteração do artigo tem como base, portanto, a decisão proferida pelo STF, sobre a inconstitucionalidade de parte do artigo 161.

Com o texto atual, apenas aquelas infrações tipificadas no Código de Trânsito Brasileiro podem ser utilizadas para compor o auto de infração, não podendo o CONTRAN criar novos tipos infracionais e se o fizer, tais condutas devem ser consideradas como ATIPICAS, não gerando qualquer efeito no prontuário do condutor ou do veículo.

Art. 161.  Constitui infração de trânsito a inobservância de qualquer preceito deste Código ou da legislação complementar, e o infrator sujeita-se às penalidades e às medidas administrativas indicadas em cada artigo deste Capítulo e às punições previstas no Capítulo XIX deste Código.

Com a nova regra o CONTRAN assume sua real posição de coadjuvante no Código de Trânsito Brasileiro, deixando de atuar de forma legislativa e passando a atuar de forma regulamentadora, trazendo exigências para o cumprimento e execução das normas já existentes, dentro de suas competências.

Aliás, a competência do órgão normativo também foi alvo das alterações pela Lei 14.071, cujo texto assim restou modificado:

Art. 12. Compete ao CONTRAN:

VIII – estabelecer e normatizar os procedimentos para o enquadramento das condutas expressamente referidas neste Código, para a fiscalização e a aplicação das medidas administrativas e das penalidades por infrações e para a arrecadação das multas aplicadas e o repasse dos valores arrecadados;

Em comparação ao texto anterior, que trazia a competência para normatizar os procedimentos para a “aplicação das multas por infrações”, o que dava à norma um sentido muito amplo, podendo ser interpretado conforme conveniência, o que motivou muitas resoluções trazendo novas condutas infratoras para possibilitar a aplicação de multas, o texto atual é melhor direcionado para a atuação apenas na esfera administrativa desse órgão.

Ao determinar que a competência do CONTRAN é normatizar o enquadramento das condutas contidas no Código de Trânsito Brasileiro, o texto eliminou qualquer possibilidade de normatização de condutas não previstas em Lei.

Além disso, delimitou suas ações normativas especificamente para os atos de fiscalização, aplicação das medidas administrativas e aplicação de penalidades.

Cabe ao órgão normativo, portanto, dizer apenas “como” deve ser realizado o procedimento administrativo para aquelas condutas já previstas, sem criar novas condutas infratoras, ainda que se trate de interesse público.

Em outras palavras, o CONTRAN não pode mais criar um fato gerador de infrações através de uma simples resolução administrativa.

Por exemplo, a Resolução 789, que diz em seu artigo 28, § 5º:

Art. 28. A ACC e a CNH serão expedidas pelo órgão ou entidade executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal, em nome do órgão máximo executivo de trânsito da União, ao condutor considerado apto nos termos desta Resolução.

5° Para efeito de fiscalização, dirigir veículo portando PPD vencida há mais de trinta dias constitui infração de trânsito prevista no inciso I do art. 162 do CTB.

Já o artigo 162, I, diz que:

Art. 162. Dirigir veículo:

I – sem possuir Carteira Nacional de Habilitação, Permissão para Dirigir ou Autorização para Conduzir Ciclomotor: 

Ora, não existe no artigo 162, I a tipificação dessa conduta infratora. Aliás, a resolução equipara um documento vencido a um documento inexistente, o que é logicamente impossível, pois o documento está vencido, não quer dizer que deixou de existir.

Aliás, mesmo estando vencida a permissão de uso do veículo, o exame de sanidade física e mental, que condiciona a validade da CNH, continua vigente no prontuário do condutor, o que impede a configuração do artigo 162, I.

E, ainda que se tente equiparar o vencimento da Permissão Para Dirigir ao vencimento da Carteira Nacional de Habilitação, a conduta continuaria atípica, pois o artigo 162, V, do Código de Trânsito Brasileiro remete ao vencimento da Carteira Nacional de Habilitação e não à PPD.

Outra resolução que cria uma nova modalidade de conduta infratora é a 619, cuja infração é “apresentar condutor que se enquadre nas condutas previstas nos incisos do artigo 162”.

Art. 5º Sendo a infração de responsabilidade do condutor, e este não for identificado no ato do cometimento da infração, a Notificação da Autuação deverá ser acompanhada do Formulário de Identificação do Condutor Infrator, que deverá conter, no mínimo:

[…]

2º No caso de identificação de condutor infrator em que a situação se enquadre nas condutas previstas nos incisos do art. 162 do CTB, serão lavrados, sem prejuízo das demais sanções administrativas e criminais previstas no CTB, os respectivos Autos de Infração de Trânsito:

I – ao proprietário do veículo, por infração ao art. 163 do CTB, exceto se o condutor for o proprietário; e

II – ao condutor indicado, ou ao proprietário que não indicá-lo no prazo estabelecido, pela infração cometida de acordo com as condutas previstas nos incisos do art. 162 do CTB.

Nesse caso, o proprietário que apresentar condutor que esteja com a carteira suspensa ou cassada, por exemplo, deve ser lavrada nova autuação com base no artigo 162, II. Mesma situação ocorre se o proprietário deixar de apresentar condutor e estiver com a carteira suspensa, pois será considerado o responsável pela infração cometida, sendo lavrada nova autuação por dirigir veículo praticando a conduta prevista no artigo 162.

Essa previsão de nova autuação com base em uma resolução, que altera inclusive o prazo legal de notificação, conta com julgados favoráveis, como o incidente de uniformização de jurisprudências do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. TURMAS RECURSAIS DA FAZENDA PÚBLICA REUNIDAS. DEPARTAMENTO ESTADUAL DE TRÂNSITO DO RIO GRANDE DO SUL DETRAN/RS. INFRAÇÕES VIRTUAIS/ CORRELATAS. – Tanto a Resolução nº 404/2012 quanto a que a sucedeu, a Resolução nº 619/2016, ambas do CONTRAN, estabelecem que estando o condutor indicado ou o proprietário de veículo (que não indicar condutor no prazo estabelecido) em situação que se enquadre nas condutas previstas nos incisos do art. 162 do CTB, serão lavrados, sem prejuízo das demais sanções administrativas e criminais previstas no código, os respectivos autos de infração de trânsito – A discussão acerca da necessidade de flagrância para a autuação não se sustenta. Ainda que não identificado o real condutor quanto da primeira infração, certo é que a lei possibilita que se afaste a presunção de que o proprietário é o condutor, concedendo-lhe prazo para esclarecimento. Optando o proprietário por não identificar condutor diverso no prazo concedido, autorizada está a autuação por infração correlata. POR MAIORIA, CONHECERAM DO INCIDENTE E UNIFORMIZARAM O ENTENDIMENTO, SEM EDIÇÃO DE ENUNCIADO, NOS TERMOS: AS CHAMADAS INFRAÇÕES DE TRÂNSITO VIRTUAIS OU CORRELATAS, GERADAS APÓS A AUSÊNCIA DE APRESENTAÇÃO DE CONDUTOR EM AUTUAÇÃO… ELETRÔNICA, SÃO REGULARES E VÁLIDAS PARA FINS DE LAVRATURA DE AUTO DE INFRAÇÃO DE TRÂNSITO EM NOME DO PROPRIETÁRIO DO VEÍCULO .  (TJ-RS – Incidente de Uniformização Jurisprudência: 71007054869 RS, Relator: Luciane Marcon Tomazelli, Data de Julgamento: 28/08/2018, Turmas Recursais da Fazenda Pública Reunidas, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 24/09/2018)

O julgado tem como base as resoluções 404 e 619 do CONTRAN. Entretanto, essa jurisprudência vai de encontro ao novo texto legal, pois não há previsão legal de lavratura de nova infração de trânsito por presunção.

Aliás, como diz a célebre frase, “se é presumido é porque não é” – (Revista Bonijuris, nº 565, Dez/2010)

E muitas outras resoluções foram elaboradas pelo CONTRAN para a criação de novos tipos de conduta infratora e poderíamos ficar vários e vários artigos para comentar sobre cada uma delas, entretanto, não é esse o objetivo.

Logo, sempre que o profissional defensor de condutores se deparar com esse tipo de situação, deve alegar a atipicidade da conduta infratora, evocando a decisão do STF e invocando o texto do novo artigo 161.

Isso porque, seria um erro de nossa parte admitir que o CONTRAN, apenas por conta da alteração legislativa, vai deixar de lado o costume que perdurou por toda a sua existência: O de achar que suas decisões são superiores à própria Lei de trânsito.

Na prática, infelizmente, nenhuma resolução que criou uma conduta infratora atípica será revogada e pior, mais resoluções serão editadas criando novas infrações sem a previsão legal, pois não é possível modificar em 180 dias algo já enraizado há mais de 20 anos.

VAGNER OLIVEIRA é advogado especializado em Direito de Trânsito, professor do curso “Prática Forense no Direito de Trânsito”, autor do livro “Infrações de trânsito sob a ótica do defensor de condutores” e colunista da revista “Trânsito e Direito”.

O artigo contém trechos da apostila do curso O NOVO PROCESSO ADMINISTRATIVO DE TRÂNSITO. O texto pode ser reproduzido ou compartilhado, desde que devidamente citada a fonte.

 

Um comentário em “Resolução não cria (mais) infração de trânsito!

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  1. Muito bom o artigo, faz nós defensores de condutores sair do “quadrado” e questionar a hierarquia das leis, onde uma resolução não pode por si só substituir a eficácia de uma lei.

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